domingo, 28 de março de 2010

Um sonho possível

O filme é bom. Mas a história é melhor. O filme acabou e continuei chorando por alguns minutos. Levantei-me apenas porque fui convocada por pernas apressadas e luzes acesas. É um filme sobre superação: típica narrativa americana, nada de novidade. O título denuncia. No entanto, emocionei-me com essa tal superação, com a solidariedade que permitiu que o personagem principal tivesse um futuro diferente daquele que lhe parecia reservado. Saber que isso realmente aconteceu, hoje, agora há pouco, num país próximo, sensibilizou-me mais.

Há algo além, entretanto. Há duas mães no filme, duas famílias. Big Mike, ou Michael como ele prefere, participou das duas famílias, teve duas mães, muitos irmãos. A biológica não tinha meios, faltava-lhe tudo o que oferecer. Vivia à margem: vendia drogas, morava num conjunto habitacional, não sabia quem eram os pais de seus filhos. Expôs as crianças a situações traumatizantes, como a que retorna continuamente à lembrança de Michael: ele sendo tirado à força dos braços dela, pois o Estado entendeu que poderia ser melhor para ele que a própria mãe. É possível que sim, embora não tenha sido isso que aconteceu.

O menino cresce. Não tem lar, nem conhecimentos formais, nem família. Conta com o abrigo de estranhos. Mas cresce, porque a natureza elide circunstâncias, imprime seu ritmo, independente de quem seja você, dos seus medos e limitações. O tempo age. A vida cobre as cicatrizes – poucas vezes as cura. Por outro lado, um mecanismo que se expressa em outras formas na natureza, faz com que ela se autocompense; alguns chamam de justiça, outros de caridade. Assim, o grandalhão sobrevive, pois encontra pelo caminho pessoas que o ajudam.

Então, num dia de frio, encontra outra mãe. E, estou certa disso, para ser mãe não basta parir. Existem, entre as mulheres, aquelas que possuem um traço distintivo que faz delas protetoras da espécie. Essas são mães. Nem sempre essa proteção é clara e óbvia. Por exemplo, nesse filme, para mim, as duas eram mães. Cada uma como podia. Porque hoje eu entendo isso: as mães fazem tudo o que podem para prover alimento e felicidade, roupas e educação, cama e regras. Às vezes, no entanto, o que têm para oferecer é pouco. O que receberam é pouco. O que sabem é pouco.

Assim, a mulher que acolhe Michael e que já tem outros dois filhos, é uma mãe que pode mais. Ela não chora na frente dos filhos, compreende-lhes as necessidades, garante segurança. É mãe porque ama e protege a espécie. O que me remete à outra. Michael tinha um instinto altíssimo de proteção; claro, sob as condições em que vivia teve de aprender a proteger-se sozinho. Mas sua progenitora deu-lhe algo antes de abandoná-lo: ensinou-lhe que a vida era boa, que as tragédias passam quando se abrem os olhos ou o dia amanhece. Por isso, no meio de um problema aparentemente insolúvel, ele fechava os olhos. O tempo agia. Ao abrir, não parecia tão ruim. Se sua mãe não o podia proteger, instruiu-lhe a fazer por si.

Uma ensinou-lhe a esquecer, a se proteger e fugir. A outra, lembrou a ele o que era família e afeto, segurou-lhe, pediu que ficasse. Cada uma foi mãe como pôde.

A maternidade não é uma entidade sagrada, inquestionável nem perfeita. Mãe – refiro-me a essas vocacionadas – nem sempre tem razão. Mãe também é displicente, negligente, rancorosa, manipuladora, chantagista, controladora. Amor pode não ser sinônimo de carinho ou gentilezas. Conheço mães, das verdadeiras, que nunca disseram eu te amo. Mãe é ser humano. Aprendem esse ofício no caminhar. Certamente o que fazem e, principalmente, o que deixam de fazer, é decisivo na vida daqueles a quem criam. Mas, com mãe, sobrevive-se. É preciso entender esse amor – por vezes indizível – ser dele cúmplice, com ele tolerante, paciente, compreensivo. É preciso perdoar a falta ou o excesso dele.

Chorei porque a vida me comove; porque minha mãe e o amor dela me comovem; porque, apesar das perdas, ela estava ali quando eu abri os olhos.

domingo, 21 de março de 2010

Meu devaneio

Se possível fosse,
partiria-me em duas:

uma falaria doce
a outra enlouqueceria

a sensata estaria na terra
a adolescente jogaria-se no (seu) mar

em algum tempo ela se perderia
aquela desejaria só encontrar

mas as duas atenderiam
quando a voz do poeta resolvesse chamar.




(Escrevo porque não sei falar,
não como deveria; não o que preciso.
Então escrevo.
Meus destinatários são tantos.
Às vezes ninguém: escrevo por não ter saída.
Vez ou outra dou a sorte de ser compreendida.
Vez ou outra dou a sorte de me compreender.)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Lucidez

Há um adiamento marcado para hoje.
O que vou deixar de fazer?

A cada palavra dita vou evitando dizer,
dissimulo a minha verdade
prorrogando o nó na garganta
(um dia ainda sufoco).

Meus passos são passos marcados num mesmo caminho
de repetição e melancolia.

Há dores reais, fingidas e criadas
que mutilam a vontade de continuar,
num eterno podar-se a si.

Ainda não é o nome do lugar des(confortável?) em que me instalei
para não sofrer.
Sinto o fantasma inexorável do Destino à espreita mas
existe um letreiro brilhando na minha cabeça [ainda não, ainda não, ainda não, ainda não]
Quando for inevitável - hoje é -, quem vai me proteger?

Eu adiei até a raiva
(só não adiei o amor, não sobreviveria sem o amor)
tenho adiado a lágrima - que devia ter se desprendido e me libertado...
as rupturas têm ficado para depois.
Tantos nãos negados...

Há um cansaço nisso tudo.
Porque
há algo que espera ser feito
há quem precise do que tenho a dizer
há os dias que não esperam
há mãos estendidas
há pernas já mais fortes pelos passos repetidos
há a alma, o aprendizado e o perdão
há, além do passado e do futuro, o presente

Não posso mais adiar viver.