segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Palavra (En)cantada

Assisti, nessa semana, à incrível obra de Helena Solberg, Palavra (En)cantada. Documentário belíssimo construído a partir de depoimentos e apresentações de grandes nomes da música popular brasileira: Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Maria Bethânia, Lenine, Zeca Baleiro, Cartola, etc. Mais do que falar de música, no entanto, fala-se de canção, letra e música, palavras e ritmos, sentidos e sons.

Seguem trechos que me marcaram. Alguns sem referência, infelizmente. Compartilho-os:

"Saiba que os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão"

"A poesia me deixa impressionado com a vida"

"A literatura deve ser compartilhada como um pão, no café da manhã de todo dia"

"O futuro é uma brincadeira que a gente tropeça nele. Tudo se acha no passado" (Tom Zé)

"A massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico" (Oswald de Andrade)

"A função da literatura é nutrir o homem de impulsos" (Arnaldo Antunes)

O filme brinda nossos olhos, ouvidos e, principalmente, nosso coração com as sofisticadíssimas criações que compõem nossa canção popular. Por que nossa música popular é tão rica? Por que nossas letras têm procedimentos estéticos dignos dos mais belos poemas? Qual o motivo de produção tão vasta e variada? Assista ao filme, consiga algumas respostas, invente outras e deixe-se encantar.





sábado, 18 de setembro de 2010

Meu caro,

Quanto tempo, eu sei. Mas ainda estou aqui e nesse tempo tive vontade de escrever-lhe algumas vezes, porém era preciso viver. Há novidades: ando pensando muito e amiúde em ser mãe. Não, não se assuste, não seria para agora, mas é que, tempos atrás, esse pensamento parecia-me estrangeiro, eu, ainda tão criança, mãe? Impossível. Uma criança não caberia na minha vida, quer dizer, na nossa vida, porque tenho a sorte de usar a primeira do plural com propriedade e amor. E esse desejo tem nascido de um modo tão bonito, que ele deve ser válido.

Sabe o que é? Eu gosto de pessoas, gosto do ser humano, acho-o uma máquina incrível de criatividade e belezas. Mesmo quando o que mostram são feiúras e repetições imbecis de erros já tão ultrapassados, acredito que o fazem pensando que estão sendo autênticos e belos. Alguns homens estão cegos para suas infinitas possibilidades de amor e criação. Não tenho raiva deles, tenho dó. Lamento enormemente que nem todos sintam a pulsão para o bem ou que a reprimam ou que não a possam sentir, pois só conheceram, desde o seu nascimento, o ódio e a indiferença.

Por sorte, e é disso que se trata a minha recente aceitação para o destino materno, estou cercada daqueles que fazem com que a existência nesse pedaço de chão, um pouco de céu e mar, não seja apenas um acúmulo de provações. Ando religiosa, sentindo-me novamente ligada a alguma coisa maior que não pretendo dar nome nem rosto, mas que faz eu reconhecer, naqueles que nem mesmo conheço, um traço de irmandade.

Há algumas crianças, adolescentes e jovens jovens perto de mim, quase todos os dias. Como são criativos! Como são livres, verdadeiros, sem preconceitos. Alguns tão sensíveis, você sabe, com os quais posso ser cúmplice silenciosamente. O que nossos silêncios e palavras compartilham? Algumas dores, tão reais e impossíveis de se escapar, artes, perdas, alegrias, saberes. Compartilho, quase todos os dias, com esses seres humanos ainda em desenvolvimento, minhas humanidades. Aprendo e recomeço. Diante de tanta vida, não há espaço para a morte de nenhum desejo.

Nem para o desejo de ser mãe, apesar de o mundo parecer assustador. Quando meu corpo e nossa vida estiverem prontos, cumprirei, feliz, esse papel que faz parte da minha natureza tão feminina.

Desculpe-me, mas não precisa responder. Eu só queria contar.

Carinhosamente,


domingo, 5 de setembro de 2010

Milagre

Dia desses usei uma metáfora, baseada em outra metáfora, para explicar a outra pessoa um momento que estava vivendo e uma decisão que havia tomado. Então eu disse: é que eu ando nascendo muito ultimamente. Foi uma revelação, para mim. Na primeira vez em que a usei, por isso disse "uma metáfora baseada em outra metáfora", ela foi construída de outra forma. Eu dissera apenas que parecia que havia nascido há pouco.

Quando revisitei esse símbolo, já carregado de outras horas e dias e vivências, apenas um nascimento não daria conta do que precisava expressar. Foi preciso exagerar a lógica humana e nascer várias vezes. Para que nos aproximemos mais da realidade, preciso contar o que de fato aconteceu. O que está acontecendo.

Ando nascendo de palavras. As palavras que leio apresentam-me, todos os dias, a vida, a beleza e o saber. Aprendo com palavras e por meio delas ensino. As palavras que digo me curam. Não depressa. Por isso é um processo. Mas à medida que as elaboro, me elaboro; quando as organizo, é a mim que coloco no lugar; se as pronuncio decididamente, descubro-me forte; e, se entre soluços não as distingo bem, sei que preciso respirar e dar -lhes tempo: as palavras são mais inteligentes quando têm tempo de se realizarem em sua forma e conteúdo.

Nunca coloquei aqui o poema completo de Cecília Meireles que dá título ao blog. Esse é um bom momento.

Romance LIII ou Das palavras aéreas

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora...

- e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juízes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?

- Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!