segunda-feira, 23 de maio de 2011

Palavras dançantes

O que o inspirou? Ao fazer essa pergunta para os outros, pouco me dei conta de que a resposta não é tão simples. Sabe-se lá o que me inspira? E é preciso saber isso para continuar vivendo? Por acaso, ao acordar hoje às 4:30h da manhã, antes mesmo de qualquer sinal do mais inspirador dos astros anunciá-lo no horizonte, eu pensei no que me inspirava?

Na verdade, não. Nem poderia pensar, porque, no meu caso, inspiração não diz respeito à razão nem à lógica; inspiração é aquilo que move os músculos contra a própria vontade ou força; aquele sopro refrescante que faz com que acreditemos; aquela mão invisível que nos afaga a fronte e faz com que sigamos em frente.

A primeira das artes que me inspirou foi a dança. Eu era uma criança e havia uma academia de ballet próxima a minha casa. Um dia, minha mãe, que era amiga da dona da academia, foi até lá comigo. Os movimentos das meninas paraceram tão fáceis e elas eram tão lindas e leves. Eu quis muito estar lá. Não fui imediatamente, mas desde que vesti o colant, as sapatilhas e meias a primeira vez, sabia que jamais seria a mesma. Eu estava inspirada a ser qualquer coisa que parecesse fada ou borboleta, disposta a sacrificar horas e horas até alcançar o movimento perfeito.

Contrariando minha visão inicial, não havia nada de fácil em dançar. A beleza residia justamente em simular facilidade, mas, na verdade, meu corpo sabia a extensão de cada movimento porque doía cada centímetro. Entretanto, uma música começava a tocar baixinha, a professora a guiar-nos e lá estava eu. Feliz. Nesses momentos, cada parte de mim se conectava e eu me sentia inteira, forte, capaz, possível, real, exatamente como o mundo era tudo isso junto comigo e vibrávamos eu e o mundo e todo mundo no mesmo compasso de uma música qualquer.

Era por isso que eu vivia. Embora não pensasse, embora não racionalizasse, cada dia fazia sentido porque a dança me inspirara. Com a dança aprendi que não há escolhas se não há disciplina; aprendi que técnica e perfeição são coisas diferentes, pois técnica sem emoção destrói qualquer dança - um bailarino que não se deixa inundar e não se permite o descontrole, não é bailarino. Aprendi a respeitar o espaço do outro: o palco é grande e cabem todos. Aprendi que em uma hora estamos lá na frente, mas, para a coreografia ficar harmônica, é preciso ficar lá atrás em algum momento. Aprendi que os solos não são mais importantes que o conjunto, só estimulam a vaidade. Aprendi docemente a agradecer: aos parceiros, à professora, à plateia – o espetáculo só se realiza com o outro. Aprendi severamente que é preciso se aquecer, ensaiar, se preparar.

Em um dia, lembro-me como se fosse hoje, após ensaios pesados na parte da manhã, à noite, cheguei ao ensaio e quis dançar fria, sem aquecimento. Nunca mais subi em um palco para dançar. Chorei por muitos dias. A perna imobilizada não me deixava esquecer a minha negligência. Depois descobri que sofria de uma problema de má formação óssea e que, mais cedo ou mais tarde, aquele acidente aconteceria. Não foi culpa minha.

Com sorte há o tempo, pois, deixando-o passar, compreendi que jamais seria a dançarina que gostaria. Além disso, a dança já havia me tocado e me modificado. Continuaria dançando em qualquer lugar, de qualquer forma, em muitos palcos. E eu danço mesmo... Se repararem em mim, danço na rua, no trabalho, em casa nem se fala... Quando vejo, lá está meu pé em ponta. Fazer as cindo posições do clássico é um passatempo. Na minha imaginação, vivo num grande musical.

Depois que cresci mais um pouco, aconteceu uma milagre: aprendi a dançar com palavras. Elas são minhas bailarinas; o papel ou a tela são seus palcos; a música? Só alguns conseguem ouvi-la. Você consegue? Está ouvindo? Talvez perceba o ritmo colocando a mão no peito. Todas as canções, de todas as minhas danças, têm o mesmo ritmo. Há passos rápidos, lentos, engraçados, sérios, comprometidos, leves. Difíceis. E eu continuo dançando. Eu e minhas palavras.