sábado, 30 de junho de 2012

Num salto, a vida

Fazia três anos que meu marido estava gravemente doente. Há dois anos que, entre melhoras e recaídas,  ele praticamente não se levantava da cama e, quando o fazia, caminhava com muita dificuldade até a cadeira que ficava ao pé da janela. De lá, sentado, via a vida em turbilhão na cidade. Mas, verdadeiramente, seus dias se resumiam ao quarto cubicular, ao pequeno rádio à cabeceira e às refeições pontuais. Tornou-se um fiapo, sobra da sombra do que fora.
Com o tempo, também eu fui ficando um pouco aleijada e aprisionada àquele cômodo da casa. Nunca fui muito de pensar sobre a vida, que pobre não tem tempo para isso - a gente vive como pode e pronto! Mas era impossível não se perguntar, pelo menos às vezes ao entoar minhas preces antes de dormir, onde estava a justiça divina e que valor tinha a existência como a daquele homem, encarcerado num corpo apodrecido pelo Alzheimer, refém de uma mente invariavelmente vazia. Quem não tem lembranças o que sabe?
Naquela manhã, porém, havia algo diferente: apesar de o esquecimento habitual acordá-lo como se não fosse um velho doente e entrevado, seu olhar tinha um brilho a mais - não do esquecimento da desgraça, mas do fulgor da esperança.
Abri os olhos e ele já me encarava docemente. Além do evasivo e costumeiro "bom dia", beijou-me. Beijou-me. Na boca. Fez carinho no meu corpo. Há tanto tempo vivíamos como companheiros fraternos que olvidara o prazer de tocar-lhe os lábios. Aquele carinho acendeu-me; eu, que não tinha mais idade de ser mulher. Olhamo-nos com ternura silenciosa e cada um levantou-se de seu lado da cama, encontrando-se à janela. A rua ainda estava vazia. Ele, contudo, estava lá: conectado, presente, lúcido. A brisa fria de julho entrava pela janela levantando alegremente as cortinas.
- Tomei uma decisão, ele disse calmamente. Foi hoje cedo, antes de você acordar.
- O que foi? O quê? Faz tanto tempo que a gente não conversa... Muito menos sobre decisões ou futuro... Que bom que você está de volta... (Esperança!)
- Eu estou cansado. Você vê? Você me vê? Me entende? Eu digo... Sente a minha dor? É insuportável! Então eu rezo para que me perdoe. Mas eu vou...
- Vai?
-...

Minha pergunta foi acompanhada por um salto mudo e rápido. De repente um estampido. Seu corpo desceu seis andares como um pedra. Não pude reagir. Eu era uma estátua à janela. Não sei quanto tempo passou até que eu pudesse me mexer e olhar. Eu poderia dizer do meu desespero, da minha vontade de também cair, da impossibilidade de continuar vivendo. Mas seria mentira... Confesso minha cruel humanidade: aqueles segundos em que minha razão esteve suspensa e eu fui só sentimento foram preenchidos por um surpreendente alívio. Lá de cima, vi um corpo disforme e irreconhecível no chão. Mas tive a impressão de que ele sorria.