segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ela

A mão que não tem força. A carne flácida, coberta por uma pele de cuja maciez não se tem nem lembrança. E não foi isso que me mobilizou. Foi o olhar: para baixo, embaçado, sem céu.

Isso foi no meu primeiro encontro comigo, na velhice sem idade. Por vezes a menina me visitou. À propósito, ela sempre esteve presente, bastando uma mera menção ao seu tempo para vir à tona. Encontrar-me com a menina era recuperar uma distinção apaziguadora. Impressionante, mas, apesar de tão nova, dela eu herdei a identidade e a singularidade; também restaram as dores que, de tão adultas, ainda hoje são dignas de serem sentidas. Se ver a menina fazia-me reviver em mim, enxergar a velha matou-me um pouco. Uma morte precipitada mas verdadeira.

Nunca antes preocupara-me com o passar dos anos. Pelo contrário: ansiava-os! A menina era potencialmente, mas não concretamente. A concretude das ações veio com a vida adulta. E os anos continuaram sendo bem-vindos. Envelhecer, até o encontro de ontem, era uma dádiva, uma oportunidade, o fim do drama e dos conflitos, o momento da paz assegurada, da segurança, da solidez, da serenidade, da beleza.

A beleza é importante (para mim). Eu me acho bonita e é realmente um prazer quando sou vista assim - apesar de isso não ser essencial; mesmo sozinha sinto-me bonita. Acostumei-me à expressão surpresa das pessoas ao dizerem "você é bonita", como uma descoberta. Já estava ali. Não é uma beleza óbvia, no entanto. Não tenho medo de parecer presunçosa, pois a imagem que o sujeito faz de si mesmo é apenas uma imagem, que pode até determinar a relação dele com o mundo, mas apenas uma imagem.

Então era assim: imaginava-me bela. Sempre. Entretanto, a velha que veio assombra-me, eu-velha, não era bonita. Havia uma feiura que saía do olhar.

E por que ela veio? Não a invoquei, como por diversas vezes fizera com a menina. Pensava que ainda não precisava dela. Sei que tudo o que ela representa é construído, só vivendo para ter. Então, por que, ontem, ela acordou-me e esteve ao meu lado pelo resto do dia, assustando-me com sua feiura?

Muda. Ela nada pronunciou, nenhum som. Ah, menina, vem e afasta-a de mim! Tagarele um pouco as suas felicidades inocentes, conte-me suas deliciosas descobertas, pinta o meu mundo com seus olhos de fantasia! Nada. Só a velha por aqui. Confesso que houve um longo período de negação. Neguei categoricamente sua presença. Adiei olhar-lhe novamente. Lá pelo final do dia, quando a luz deu uma trégua e a sombra nos recebeu, calorosa, não pude mais resistir. Encarei-a.

Ela estava de pé, junto à soleira da porta. Braços cruzados ao redor da barriga. Usava vestido de tecido na altura dos joelhos. As pernas continuavam finas. Cabelos grisalhos presos na metade da cabeça. Sua magreza seria elegante não fossem as peles caindo em camadas sob o pano fino. Ela não sorriu (talvez, se sorrisse, ficasse menos feia, dizem que meu sorriso é bonito). Apenas olhava-me fixamente. Os olhos tinham as pálpebras um pouco caídas. Eu tive pena de mim. Nunca senti pena de mim antes, até ver-me velha.

Quer dizer então que é possível não apaziguar-me? Que com o passar dos anos posso gostar ainda mais do drama (como o animal que histericamente se debate, ignorando o que o prende)? Que minha segurança eram muletas que se partiram e que nunca estiveram em mim? Quer dizer que seguimos por um caminho desconhecido. Que a menina pode potencialmente tudo e que ela e a velha e todas elas são esplêndidas manifestações possíveis para a mesma vida.

Ela queria me dizer algo. Silenciosa e contundentemente disse-me que não se pode negar impunemente a feiura em nós.

2 comentários:

Unknown disse...

Lindo!!!! me veio um pedaço da música...Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...
A única certeza a delícia de ser.

Carol da Matta disse...

a dor também nos forma, assim como a feiura e não é prudente negá-las. Mais prudente é ter por elas compreensão e caridade.