domingo, 26 de dezembro de 2010

Eu tenho um problema. Ultimamente só consigo falar na primeira pessoa e a ficção não tem enchido muito meus olhos. Não consigo inventar e escrever; ou invento mas não escrevo ou sinto vontade de escrever para falar de mim. Preguiça de criar um nome, uma personagem, uma metáfora, uma complicação para dizer simplesmente aquilo que sinto...

Preciso de um novo diário.

Até!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Religiosidade

A palavra ata-me ao mundo
Torna-me irmã até mesmo do mais imundo
dos homens, porque o meu começo,
e o dele, foi o verbo, berço
de toda criatura
cuja amargura não tem endereço.

Quando leio um poema de Drummond
Essa é minha oração, o meu alento
É como se Deus dissesse:
"Não te aflijas, meu rebento!
Há esperança!"
(Uma flor nasceu na rua! É feia, mas é uma flor!)
Que Alegria!

Então sei que Ele existe
Faz do poeta seu sacerdote
a transpor o limite do sagrado
pois mostra-nos, em sua ode,
Amor divino disfarçado
em poesia.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Metáfora - Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A espera

Aguardo-te chegar sentada nesse banco alto do bar do restaurante onde sempre marcamos. A moça de óculos escuros, na mesa à frente, não olhou nem sequer um segundo para o homem que a corteja delicadamente. Se eu tivesse uma filha ela se chamaria Eleonora. Eleonora? É por isso que não terei filha. Serei mãe de meninos, eu sei.

Minha roupa simples parece inadequada à ocasião, mas gosto dela: sapatilhas vermelhas, calças jeans, minha camisa preferida, um anel, grande, de ouro, brincos de pérola. Ajeito-me, alisando a roupa sistematicamente, como se a tornasse digna com o gesto repetido. Aceito mais uma dose e bebo sem pressa. Ele não se atrasa. Há tempo. O tempo é exato.

Tudo está no seu devido lugar, no lugar que cada coisa escolheu, ou onde lhe puseram. Cada qual que providencie a parte que lhe cabe. Aos outros, cabe a generosidade de ser generoso, se preciso for. E se eu tiver uma filha? Nome é bobagem. Nossa, dessa vez ele se atrasou. Acho que vou beber uma tequila. A moça tirou os óculos, enxugou as lágrimas, deixou-se abraçar. Não adianta resistir, manter-se no sofrimento. Perdoar é libertador, acho que foi o que o homem disse. Uma dose de tequila por favor!

Meus olhos sorriem. Uma alegria modesta e constante me mantém. Uma alegria aguda explode! Que bom que chegou! Não quero perder o tom, nem o horário, nem o desejo, nem o bonde, nem a medida do nosso amor.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Palavra (En)cantada

Assisti, nessa semana, à incrível obra de Helena Solberg, Palavra (En)cantada. Documentário belíssimo construído a partir de depoimentos e apresentações de grandes nomes da música popular brasileira: Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Maria Bethânia, Lenine, Zeca Baleiro, Cartola, etc. Mais do que falar de música, no entanto, fala-se de canção, letra e música, palavras e ritmos, sentidos e sons.

Seguem trechos que me marcaram. Alguns sem referência, infelizmente. Compartilho-os:

"Saiba que os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão"

"A poesia me deixa impressionado com a vida"

"A literatura deve ser compartilhada como um pão, no café da manhã de todo dia"

"O futuro é uma brincadeira que a gente tropeça nele. Tudo se acha no passado" (Tom Zé)

"A massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico" (Oswald de Andrade)

"A função da literatura é nutrir o homem de impulsos" (Arnaldo Antunes)

O filme brinda nossos olhos, ouvidos e, principalmente, nosso coração com as sofisticadíssimas criações que compõem nossa canção popular. Por que nossa música popular é tão rica? Por que nossas letras têm procedimentos estéticos dignos dos mais belos poemas? Qual o motivo de produção tão vasta e variada? Assista ao filme, consiga algumas respostas, invente outras e deixe-se encantar.





sábado, 18 de setembro de 2010

Meu caro,

Quanto tempo, eu sei. Mas ainda estou aqui e nesse tempo tive vontade de escrever-lhe algumas vezes, porém era preciso viver. Há novidades: ando pensando muito e amiúde em ser mãe. Não, não se assuste, não seria para agora, mas é que, tempos atrás, esse pensamento parecia-me estrangeiro, eu, ainda tão criança, mãe? Impossível. Uma criança não caberia na minha vida, quer dizer, na nossa vida, porque tenho a sorte de usar a primeira do plural com propriedade e amor. E esse desejo tem nascido de um modo tão bonito, que ele deve ser válido.

Sabe o que é? Eu gosto de pessoas, gosto do ser humano, acho-o uma máquina incrível de criatividade e belezas. Mesmo quando o que mostram são feiúras e repetições imbecis de erros já tão ultrapassados, acredito que o fazem pensando que estão sendo autênticos e belos. Alguns homens estão cegos para suas infinitas possibilidades de amor e criação. Não tenho raiva deles, tenho dó. Lamento enormemente que nem todos sintam a pulsão para o bem ou que a reprimam ou que não a possam sentir, pois só conheceram, desde o seu nascimento, o ódio e a indiferença.

Por sorte, e é disso que se trata a minha recente aceitação para o destino materno, estou cercada daqueles que fazem com que a existência nesse pedaço de chão, um pouco de céu e mar, não seja apenas um acúmulo de provações. Ando religiosa, sentindo-me novamente ligada a alguma coisa maior que não pretendo dar nome nem rosto, mas que faz eu reconhecer, naqueles que nem mesmo conheço, um traço de irmandade.

Há algumas crianças, adolescentes e jovens jovens perto de mim, quase todos os dias. Como são criativos! Como são livres, verdadeiros, sem preconceitos. Alguns tão sensíveis, você sabe, com os quais posso ser cúmplice silenciosamente. O que nossos silêncios e palavras compartilham? Algumas dores, tão reais e impossíveis de se escapar, artes, perdas, alegrias, saberes. Compartilho, quase todos os dias, com esses seres humanos ainda em desenvolvimento, minhas humanidades. Aprendo e recomeço. Diante de tanta vida, não há espaço para a morte de nenhum desejo.

Nem para o desejo de ser mãe, apesar de o mundo parecer assustador. Quando meu corpo e nossa vida estiverem prontos, cumprirei, feliz, esse papel que faz parte da minha natureza tão feminina.

Desculpe-me, mas não precisa responder. Eu só queria contar.

Carinhosamente,


domingo, 5 de setembro de 2010

Milagre

Dia desses usei uma metáfora, baseada em outra metáfora, para explicar a outra pessoa um momento que estava vivendo e uma decisão que havia tomado. Então eu disse: é que eu ando nascendo muito ultimamente. Foi uma revelação, para mim. Na primeira vez em que a usei, por isso disse "uma metáfora baseada em outra metáfora", ela foi construída de outra forma. Eu dissera apenas que parecia que havia nascido há pouco.

Quando revisitei esse símbolo, já carregado de outras horas e dias e vivências, apenas um nascimento não daria conta do que precisava expressar. Foi preciso exagerar a lógica humana e nascer várias vezes. Para que nos aproximemos mais da realidade, preciso contar o que de fato aconteceu. O que está acontecendo.

Ando nascendo de palavras. As palavras que leio apresentam-me, todos os dias, a vida, a beleza e o saber. Aprendo com palavras e por meio delas ensino. As palavras que digo me curam. Não depressa. Por isso é um processo. Mas à medida que as elaboro, me elaboro; quando as organizo, é a mim que coloco no lugar; se as pronuncio decididamente, descubro-me forte; e, se entre soluços não as distingo bem, sei que preciso respirar e dar -lhes tempo: as palavras são mais inteligentes quando têm tempo de se realizarem em sua forma e conteúdo.

Nunca coloquei aqui o poema completo de Cecília Meireles que dá título ao blog. Esse é um bom momento.

Romance LIII ou Das palavras aéreas

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora...

- e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juízes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?

- Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!



terça-feira, 27 de julho de 2010

O medo

Que é que faço eu
que não me ouço?

Que não deixo meu peito
se encher de ar
e falar com voz doce
ao resto do meu corpo?

Onde estou eu
que não me deixo estar
exatamente onde gostaria
de estar?

Que é que penso eu
que não percebo
que só eu sei
o erro que cometo
a dor que suporto
a alegria de que preciso
a liberdade de que gozo?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Divulgando - concurso de Contos ABL

http://www2.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=10394&sid=672

domingo, 18 de julho de 2010

Homenagem à vovó

Ciléa .

Uma grande Mulher. Sabe-se que nem Freud conseguiu definir o que é ser Mulher. Já Lacan, e perdoem-me a simplicidade com que trato disso, principalmente os verdadeiramente versados em psicologia, diz que a Mulher, com letra maiúscula, não existe. O Homem tem uma representação padrão, o falo, do que é ser homem. A mulher não: ela é única e precisa fazer-se existir e representar-se a cada momento. Por isso, numa festa, é tão ruim ter uma mulher com o mesmo vestido que o nosso, é como se ela se representasse da mesma forma como nós .

Ciléa foi desas mulheres que se fizeram ( e se fazem) únicas. E Que vestidos Ciléa vestiu na vida? Na infância, é possível que fosse simples, sem muitas cores, filha do meio... sabe como é... Mas com certeza adorava o uniforme escolar, pois era com ele que estudava... uma pena foi tanta inteligência não poder ter ido formalmente adiante. Uma vez, no auge da arrogância adolescente, minha avó tentava me consolar porque estava muito nervosa com o vestibular e eu insensível falei: E a senhora sabe o que é vestibular? Ela não respondeu e chorou. Fiquei paralisada. Ela disse um tem depois: não estudei mais porque não pude. Mas tenho muito orgulho de ver meus netos na Universidade (quem a conhece, sabe que ela completaria – todos na Universidade pública.) Se tivesse ido à Universidade o que seria? Seria uma grande cientista? Professora? Economista? Médica? Não, seria artista. E foi. E é.

Vestiu-se de noiva para casar: vestido plinçado e passado prega por prega, não é isso vó? Conheço a foto, mas quem viu pessoalmente em 1952 disse que parecia uma princesa. No entanto, as verdadeiras vestes de sua vida de casada foram um pouco mais duras, tiveram de ser. Engana-se quem pensa que ela capitulou frente ao desafio: foi companheira leal até o fim.

Seus vestidos outros, todos, manchados: a vida adulta os tingiu de tinta de suas pinturas e artes, de molhos da sua cozinha, uniu a eles fitas dos vestidos que fazia para suas filhas, retalhos das camisas do filho e até de algumas lágrimas que também devem tê-los molhado.

Sem importar a roupa: de feira, de dona-de-cada, de muambeira, de costureira, de boleira e doceira, de mãe, de avó e de esposa havia sempre, como uma capa que dá nobreza a qualquer vestido, a firmeza do caráter em cada ação.Cileá não sabe muito fazer carinho, ela sabe agir. E suas ações são sempre tão cheias de honestidade e honradez e amor e firmeza, que, sem importar a roupa, sempre foi altiva na vida.

Vovó foi acumulando vestidos, personalidades, funções. Foi incansável, é incansável. Uma última historinha que ilusta sua disposição: no ano em que anunciei o meu casamento, em 2008, ela estava fazendo um curso de pintura em tecidos. Teve, então, a ideia de fazer panos de prato e tolhas para o meu enxoval. Não bastasse isso, ela queria bordá-los, mas não sabia. Um dia, foi ao centro de São Gonçalo e descobriu uma senhora que vendia panos bordados. Perguntou se a outra senhora poderia ensinar-lhe. A partir daquele dia, todos os dias, após o Vale a pena ver de novo – é grande noveleira! -, durante um bom tempo, foi ao encontro daquela outra mulher aprender a bordar. Aos 78 anos. Cileá descobriu que velho é quem desistiu de aprender.

Hoje, comemorando seus 80 anos, seu brilho no olhar enche-a de babados, de paetês, de cores. Porque Ciléa, avó, mãe, irmã, tia, cunhada e amiga amada, saber gostar da vida e sabe viver!

E é com muita alegria que hoje todos nós nos vestimos de festa para celebrar sua vida!

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Em si, consigo.

Laura já estava tão cansada de sua busca, que decidiu ater-se ao que sabia. Ela já não era mais uma criança; o véu da fantasia, que deturpa o resultado do olhar, já não estava mais em seus olhos.

Agora olhava o mundo quase como ele era. O quase era uma observação dela, que, um dia, contemplando a movimentação da rua pela janela do seu quarto - a mesma janela e a mesma rua de todos os dias - percebeu que o mundo não era, ele estava. Porque ontem ele estivera outro.

Foi um momento epifânico quando chegou à conclusão de que ela também, constituinte do mundo, só podia estar, embora fosse. Verdadeiramente descobrira muito sobre o que a rodeava e a habitava. Por isso não era mais criança.

Sua angústia se abrandara. Porque o mundo era um moinho, mas era bonito. Porque nem sempre havia brilho no sorriso, mas, se quisesse, poderia sorrir. Porque se olhou no espelho e viu que não era tão grande a ponto de ser superior, nem tão pequena que... Ah, não importa! Ela existia e isso era bom. E, se ninguém mais a visse - o que antes a apavorava - ela não morreria; não morreria mais por ninguém: só ela poderia morrer-se. E não queria mais morrer. Queria a brisa, o vendaval, a chuva e o sol. Queria os caminhos: percorrê-los, senti-los, sê-los.

A menina, ela, Laura, tornava-se mulher. Ela queria a vida, com tudo, apesar de.

domingo, 27 de junho de 2010

Reflexões duma manhã de domingo

Viver sendo arte = viver como exceção = olhar a estrada sem respostas = mais dúvidas = incorporação da estrada = ser.

"Aprender a viver é viver de verdade."
[João Guimarães Rosa]

E o dia estava lindo...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

basta que hoje alguém diga,
com voz de fim de carnaval,
- eu entendo o seu cansaço
os seus anos de feridas disfarçadas
suas angústias caladas
sua vontade de ser.

-eu entendo você
essa máscara de choro
com um riso de lado
de quem já está no osso de si mesmo.

sábado, 29 de maio de 2010

No banheiro

Entra uma senhora cega e solicita, humildemente, ajuda. As pessoas presentes se entreolham perguntando quem vai. Uma sai rapidamente, outra vira-se sem cerimônia para o espelho "estou ocupada", a outra retorna à cabine. Eu já ia ajudar, ninguém precisava fugir, pensei.
- Pois não, senhora.
- Ah, obrigada.
- Vamos?

Nesse momento pensei se seria necessário também entrar na cabine. Acho que seria estranho, mas encararia.

- Não, prefiro o outro. A privada desse é muito alta e eu acabo molhando meu pé.

Sorrimos.

- Deixe-me diante do outro, coloque, por favor, o papel na minha mão, que o resto eu sei, disse ainda com um meio sorriso.

Em pouco tempo saiu. Fui até o lavatório levando-a pelo braço. Abriu a torneira sozinha. Lavou as mãos e secou-as com um pedaço de papel que havia prendido no decote.

Enquanto nos dirigíamos à saída, perguntei se precisava de ajuda para ir a algum lugar, pelo menos até o elevador.

- Não, não precisa. Há alguém me esperando aí fora.

Saímos e havia um senhorzinho. Uns setenta e poucos anos como ela. Cabeça bem branquinha. Soltei-lhe as mãos que rapidamente se enlaçaram a do homem.

- Muito obrigada pela sua gentileza, minha filha. Deus retribua... - ele disse e ela reforçou.

Ainda me afastava, comovida pela cumplicidade daquele casal, quando ouvi:

- Meu amor, pra onde vamos agora?

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O sonho

Eu tenho muitos pesadelos. Desde a infância que os maus sonhos me acompanham, me assombram, fazem-me despertar no meio da noite com o coração aos pulos, a perna tremendo e com medo. E, nesse caso, escrevo na primeira pessoa sendo eu, um eu-empírico que usa esse espaço em branco para se organizar. Contar uma nova história ou uma velha história novamente, com novidade, é um nascimento. É bom inaugurar um papel totalmente em branco. Sou eu quem me narro, me escrevo, me inscrevo nessa história. E talvez os pesadelos não tenham sido exatamente assim e eu os esteja fantasiando. A fantasia da fantasia.

Todos eram aterrorizantes. No entanto, havia um mais cruel que todos. Recorrente. Eu ia por uma estrada escura, de terra batida, com uma chuva que não chegava a molhar o chão, mas deixava o ar embaçado. Essa estrada não tinha fim. Quilômetros e quilômetros de caminhar sem haver uma chegada. Era frio. Eu estava só. Queria chegar, queria voltar. Aonde? Pra onde? Pois é, eu nunca soube. Daí a angústia e um peso no peito sufocante que permanecia mesmo após horas de acordada. Em algumas noites esse longo trajeto era apressado por uma corrida, uma fuga desesperada, pois algo estava prestes a me pegar. Nunca tive coragem de olhar para trás e conferir o tamanho do monstro.

Essa noite, entretanto, foi diferente: eu tive um sonho bom. Não que eu não os tenha; eles são raros. Somente vez ou outra vêm alegrar meu sono. Mas essa noite... eu sonhei que eu dirigia: nem desgovernada por uma ladeira, nem fugindo de alguém, nem prestes a cair num precipício... eu dirigia um conversível (imaginem... eu que nem sei dirigir de verdade!) e estava de dia! Era um dia claro, com um sol tímido que colocava uma lente amarelada nos meus olhos. Assim como a outra, essa estrada era tortuosa, cheia de curvas e eu também não via seu fim. Porém isso não doía. Não lembro se havia um mar limitando-a a leste, mas a brisa estava lá, aumentando toda vez que pisava fundo no acelerador. Prazer da corrida. Cheiro de sal. Gosto de domingo. Eu apertava, com força e segurança ,o volante. A cada curva, uma sensação de avanço era sentida através do meu sorriso: alegria de crescer.

Éramos apenas eu, o carro e a certeza de que não havia perigo. Esse controle e essa liberdade, ninguém mos rouba mais.

sábado, 8 de maio de 2010

amor

Sendo a vida uma ciranda
com muitos recomeços

toda vez que acho
que é o meu fim

é a sua mão, dada à minha,
que me lembra
que ela continua.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um conto que não aconteceu

- Porque, se tenho me justificado pelo meu choro, é porque não quero que ele pareça o que realmente é.

Era hora do almoço quando o encontrou. Laura queria apenas ser carregada por aquela conversa, foi o que pensara ao vê-lo - essa, uma metáfora roubada. Era disso que se tratava aquele encontro. Um encontro tão generoso que entendesse o seu silêncio. Porque ela nada poderia falar naquele dia.

João já estava na porta do bar. Uma das mãos no bolso e a outra segurando distraidamente o cigarro. Seu rosto estava claro apesar da barba por fazer e foi um alívio a visão dele ali.

Era confuso o que sentia. Ele estava certo: devia, o mais rápido possível ,desvencilhar-se daquela dor e daquela alegria que nunca verdadeiramente lhe pertenceram.

A aflição dela vinha do não saber. Ela queria apreender o mundo com seus olhos, mãos... com o corpo todo. Queria que sua existência fosse o testemunho de tudo aquilo que há. Mas o mundo lhe escapava.

- Laura, ...
...
...
...

Distraía-se com bobagens: música no rádio, pessoas passando, o vento que balançava timidamente as árvores, o sol que dava uma cor diferente aos olhos dele. Lá fora, a vida.

Palavras em ciranda na sua cabeça, alheias ou suas, tomavam-lhe tempo demais.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Rimas e risos

Queria hoje escrever uma poesia

que não fosse nem sobre escrever

nem sobre as dores que ainda vou ter


Queria escrever uma poesia sem agonia

gostaria que ela sorrisse

que não fosse triste


Queria escrever uma poesia leve

com ar de fim de tarde na praia

aguardando que o sol caia


Lá fora poderia haver neve

que esse brilho aqui, dentro de mim

faria, docemente, brotar assim


esse poeminha cheio de alegria para mim.

domingo, 18 de abril de 2010

domingo, 11 de abril de 2010

eu confesso 3

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 28 de março de 2010

Um sonho possível

O filme é bom. Mas a história é melhor. O filme acabou e continuei chorando por alguns minutos. Levantei-me apenas porque fui convocada por pernas apressadas e luzes acesas. É um filme sobre superação: típica narrativa americana, nada de novidade. O título denuncia. No entanto, emocionei-me com essa tal superação, com a solidariedade que permitiu que o personagem principal tivesse um futuro diferente daquele que lhe parecia reservado. Saber que isso realmente aconteceu, hoje, agora há pouco, num país próximo, sensibilizou-me mais.

Há algo além, entretanto. Há duas mães no filme, duas famílias. Big Mike, ou Michael como ele prefere, participou das duas famílias, teve duas mães, muitos irmãos. A biológica não tinha meios, faltava-lhe tudo o que oferecer. Vivia à margem: vendia drogas, morava num conjunto habitacional, não sabia quem eram os pais de seus filhos. Expôs as crianças a situações traumatizantes, como a que retorna continuamente à lembrança de Michael: ele sendo tirado à força dos braços dela, pois o Estado entendeu que poderia ser melhor para ele que a própria mãe. É possível que sim, embora não tenha sido isso que aconteceu.

O menino cresce. Não tem lar, nem conhecimentos formais, nem família. Conta com o abrigo de estranhos. Mas cresce, porque a natureza elide circunstâncias, imprime seu ritmo, independente de quem seja você, dos seus medos e limitações. O tempo age. A vida cobre as cicatrizes – poucas vezes as cura. Por outro lado, um mecanismo que se expressa em outras formas na natureza, faz com que ela se autocompense; alguns chamam de justiça, outros de caridade. Assim, o grandalhão sobrevive, pois encontra pelo caminho pessoas que o ajudam.

Então, num dia de frio, encontra outra mãe. E, estou certa disso, para ser mãe não basta parir. Existem, entre as mulheres, aquelas que possuem um traço distintivo que faz delas protetoras da espécie. Essas são mães. Nem sempre essa proteção é clara e óbvia. Por exemplo, nesse filme, para mim, as duas eram mães. Cada uma como podia. Porque hoje eu entendo isso: as mães fazem tudo o que podem para prover alimento e felicidade, roupas e educação, cama e regras. Às vezes, no entanto, o que têm para oferecer é pouco. O que receberam é pouco. O que sabem é pouco.

Assim, a mulher que acolhe Michael e que já tem outros dois filhos, é uma mãe que pode mais. Ela não chora na frente dos filhos, compreende-lhes as necessidades, garante segurança. É mãe porque ama e protege a espécie. O que me remete à outra. Michael tinha um instinto altíssimo de proteção; claro, sob as condições em que vivia teve de aprender a proteger-se sozinho. Mas sua progenitora deu-lhe algo antes de abandoná-lo: ensinou-lhe que a vida era boa, que as tragédias passam quando se abrem os olhos ou o dia amanhece. Por isso, no meio de um problema aparentemente insolúvel, ele fechava os olhos. O tempo agia. Ao abrir, não parecia tão ruim. Se sua mãe não o podia proteger, instruiu-lhe a fazer por si.

Uma ensinou-lhe a esquecer, a se proteger e fugir. A outra, lembrou a ele o que era família e afeto, segurou-lhe, pediu que ficasse. Cada uma foi mãe como pôde.

A maternidade não é uma entidade sagrada, inquestionável nem perfeita. Mãe – refiro-me a essas vocacionadas – nem sempre tem razão. Mãe também é displicente, negligente, rancorosa, manipuladora, chantagista, controladora. Amor pode não ser sinônimo de carinho ou gentilezas. Conheço mães, das verdadeiras, que nunca disseram eu te amo. Mãe é ser humano. Aprendem esse ofício no caminhar. Certamente o que fazem e, principalmente, o que deixam de fazer, é decisivo na vida daqueles a quem criam. Mas, com mãe, sobrevive-se. É preciso entender esse amor – por vezes indizível – ser dele cúmplice, com ele tolerante, paciente, compreensivo. É preciso perdoar a falta ou o excesso dele.

Chorei porque a vida me comove; porque minha mãe e o amor dela me comovem; porque, apesar das perdas, ela estava ali quando eu abri os olhos.

domingo, 21 de março de 2010

Meu devaneio

Se possível fosse,
partiria-me em duas:

uma falaria doce
a outra enlouqueceria

a sensata estaria na terra
a adolescente jogaria-se no (seu) mar

em algum tempo ela se perderia
aquela desejaria só encontrar

mas as duas atenderiam
quando a voz do poeta resolvesse chamar.




(Escrevo porque não sei falar,
não como deveria; não o que preciso.
Então escrevo.
Meus destinatários são tantos.
Às vezes ninguém: escrevo por não ter saída.
Vez ou outra dou a sorte de ser compreendida.
Vez ou outra dou a sorte de me compreender.)

quinta-feira, 4 de março de 2010

Lucidez

Há um adiamento marcado para hoje.
O que vou deixar de fazer?

A cada palavra dita vou evitando dizer,
dissimulo a minha verdade
prorrogando o nó na garganta
(um dia ainda sufoco).

Meus passos são passos marcados num mesmo caminho
de repetição e melancolia.

Há dores reais, fingidas e criadas
que mutilam a vontade de continuar,
num eterno podar-se a si.

Ainda não é o nome do lugar des(confortável?) em que me instalei
para não sofrer.
Sinto o fantasma inexorável do Destino à espreita mas
existe um letreiro brilhando na minha cabeça [ainda não, ainda não, ainda não, ainda não]
Quando for inevitável - hoje é -, quem vai me proteger?

Eu adiei até a raiva
(só não adiei o amor, não sobreviveria sem o amor)
tenho adiado a lágrima - que devia ter se desprendido e me libertado...
as rupturas têm ficado para depois.
Tantos nãos negados...

Há um cansaço nisso tudo.
Porque
há algo que espera ser feito
há quem precise do que tenho a dizer
há os dias que não esperam
há mãos estendidas
há pernas já mais fortes pelos passos repetidos
há a alma, o aprendizado e o perdão
há, além do passado e do futuro, o presente

Não posso mais adiar viver.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Porque eu ainda preciso de poesia

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

(...)

Por isso, melhor se guarda um voo de um pássaro
Do que que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e se declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antônio Cícero.

simulacro

Minhas palavras, essas palavras, são as testemunhas oculares da minha incapacidade de simplesmente dizer.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ela

A mão que não tem força. A carne flácida, coberta por uma pele de cuja maciez não se tem nem lembrança. E não foi isso que me mobilizou. Foi o olhar: para baixo, embaçado, sem céu.

Isso foi no meu primeiro encontro comigo, na velhice sem idade. Por vezes a menina me visitou. À propósito, ela sempre esteve presente, bastando uma mera menção ao seu tempo para vir à tona. Encontrar-me com a menina era recuperar uma distinção apaziguadora. Impressionante, mas, apesar de tão nova, dela eu herdei a identidade e a singularidade; também restaram as dores que, de tão adultas, ainda hoje são dignas de serem sentidas. Se ver a menina fazia-me reviver em mim, enxergar a velha matou-me um pouco. Uma morte precipitada mas verdadeira.

Nunca antes preocupara-me com o passar dos anos. Pelo contrário: ansiava-os! A menina era potencialmente, mas não concretamente. A concretude das ações veio com a vida adulta. E os anos continuaram sendo bem-vindos. Envelhecer, até o encontro de ontem, era uma dádiva, uma oportunidade, o fim do drama e dos conflitos, o momento da paz assegurada, da segurança, da solidez, da serenidade, da beleza.

A beleza é importante (para mim). Eu me acho bonita e é realmente um prazer quando sou vista assim - apesar de isso não ser essencial; mesmo sozinha sinto-me bonita. Acostumei-me à expressão surpresa das pessoas ao dizerem "você é bonita", como uma descoberta. Já estava ali. Não é uma beleza óbvia, no entanto. Não tenho medo de parecer presunçosa, pois a imagem que o sujeito faz de si mesmo é apenas uma imagem, que pode até determinar a relação dele com o mundo, mas apenas uma imagem.

Então era assim: imaginava-me bela. Sempre. Entretanto, a velha que veio assombra-me, eu-velha, não era bonita. Havia uma feiura que saía do olhar.

E por que ela veio? Não a invoquei, como por diversas vezes fizera com a menina. Pensava que ainda não precisava dela. Sei que tudo o que ela representa é construído, só vivendo para ter. Então, por que, ontem, ela acordou-me e esteve ao meu lado pelo resto do dia, assustando-me com sua feiura?

Muda. Ela nada pronunciou, nenhum som. Ah, menina, vem e afasta-a de mim! Tagarele um pouco as suas felicidades inocentes, conte-me suas deliciosas descobertas, pinta o meu mundo com seus olhos de fantasia! Nada. Só a velha por aqui. Confesso que houve um longo período de negação. Neguei categoricamente sua presença. Adiei olhar-lhe novamente. Lá pelo final do dia, quando a luz deu uma trégua e a sombra nos recebeu, calorosa, não pude mais resistir. Encarei-a.

Ela estava de pé, junto à soleira da porta. Braços cruzados ao redor da barriga. Usava vestido de tecido na altura dos joelhos. As pernas continuavam finas. Cabelos grisalhos presos na metade da cabeça. Sua magreza seria elegante não fossem as peles caindo em camadas sob o pano fino. Ela não sorriu (talvez, se sorrisse, ficasse menos feia, dizem que meu sorriso é bonito). Apenas olhava-me fixamente. Os olhos tinham as pálpebras um pouco caídas. Eu tive pena de mim. Nunca senti pena de mim antes, até ver-me velha.

Quer dizer então que é possível não apaziguar-me? Que com o passar dos anos posso gostar ainda mais do drama (como o animal que histericamente se debate, ignorando o que o prende)? Que minha segurança eram muletas que se partiram e que nunca estiveram em mim? Quer dizer que seguimos por um caminho desconhecido. Que a menina pode potencialmente tudo e que ela e a velha e todas elas são esplêndidas manifestações possíveis para a mesma vida.

Ela queria me dizer algo. Silenciosa e contundentemente disse-me que não se pode negar impunemente a feiura em nós.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Silêncio (1799-1801), de Füssli.

meu silêncio é minha covardia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

da série usando palavras alheias - II

Sabem o que
descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me
entorno e ainda morro vazia, sem gota.


(Do conto "A despedideira", do
livro O fio das missangas, de Mia Couto)