domingo, 27 de março de 2011

Atenção: se você não estiver preparado para o mau texto, é melhor não ler.

A notícia: meu pai morreu. Não o meu pai, mas o pai de um amigo. O que eu ouvi: pais morrem, meu pai morreu, seu pai morreu, nossos pais morreram. Meu pai morreu faz muito tempo. Meu avô morreu dois anos depois. Meu outro avô já tinha morrido. Meu tio morreu. As pessoas da minha vida morrem. Mas aquela notícia foi um golpe. Estou cansada das mortes. Faz menos de um mês que o pai do meu amigo morreu. Então chorei alguns minutos, quase uma hora. Chorei de soluçar, porque não era o meu pai que já tinha morrido e que não me viu crescer e do qual não lembro mais a voz e com o qual não sonho mais faz uns dez anos e também não era o meu avô a quem coloquei imediatamente no lugar de macho alfa da minha vida e para quem dei a camisa que a gente fez na escola, onde estava escrito: pai herói, mas que morreu num dia em que senti alívio pois não sofreria mais do maldito câncer que o castigou por sete anos e que matou meu pai em três ligeiros meses.

Chorei porque era o pai perfeito do meu amigo. Provavelmente ele não era perfeito, mas ele conhecia meu amigo de tantas formas e estava sempre tão ali e era velho e ranzinza, mas ensinou de um tudo; e leu e discutiu junto em tardes animadas na varanda da casa com os amigos que tampouco imaginavam quanto amor os unia. Chorei tão forte e solucei e pedi ajuda para ficar de pé porque não é justa essa dor. Chorei porque deve ser uma alegria tão cotidiana ligar para o pai e falar qualquer coisa e pedir dinheiro ou dizer que se ferrou que ninguém se dá conta e esse não dar-se conta é maravilhoso porque provavelmente nunca foi necessário pensar sobre isso. Não pensar sobre isso é uma sorte.

Chorei porque conheço essa ausência, mas tinha esquecido dela. No velório, meu amigo disse, mas você só o viu uma ou duas vezes, né? Mas o pai que ele pintou para mim, apesar de tanta adoração, às vezes, ter me irritado - mais por inveja do que por outro motivo - era um pai tão real e possível e presente e artista e inspirador que o tinha em meu coração. Era assim: eu lembrava o que era ter pai. Chorei, verdadeiramente, porque fui obrigada a lembrar o que era não ter.

E quando falava disso: ah, meu pai morreu, era serenamente, como ausência assimilada. Quase sempre protegida por esse "esquecimento" de que falei. Mas ficou difícil esses dias. Lamento ter ficado ausente na sua dor, amigo. Mas é que também estive de luto.







domingo, 30 de janeiro de 2011

Se essa sensação de hoje pudesse ser uma foto, nada na imagem seria reconhecido, mas as cores seriam hamoniosas, claras. No centro dessa claridade de cores suaves e harmoniosas eu estaria diante de um espelho e o meu olhar me olharia sem se desviar. Haveria também uma música, na foto, porque meu corpo estaria inclinado para o lado e minhas mãos imitando as mãos de uma bailarina e minha boca contraída para cantar aquela canção, que é como eu gosto de estar. Antes do espelho, ao meu lado, é a sua música que eu canto; a música que sai do seu violão. E, mesmo a foto sendo um registro da realidade, eu não sei, mas haveria tantas pessoas, vivas e mortas, na mistura das cores, que ninguém saberia de quem se tratava, mas quem olhasse ficaria alegre.

Se essa sensação de hoje fosse uma palavra, seria gratidão.

Se fosse um livro, seria o primeiro.

Se fosse um lugar, seria minha casa.

Se fosse um filme, seria dos bonitos (que fazem chorar).

Se fosse um dia, não terminaria.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Eu tenho um problema. Ultimamente só consigo falar na primeira pessoa e a ficção não tem enchido muito meus olhos. Não consigo inventar e escrever; ou invento mas não escrevo ou sinto vontade de escrever para falar de mim. Preguiça de criar um nome, uma personagem, uma metáfora, uma complicação para dizer simplesmente aquilo que sinto...

Preciso de um novo diário.

Até!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Religiosidade

A palavra ata-me ao mundo
Torna-me irmã até mesmo do mais imundo
dos homens, porque o meu começo,
e o dele, foi o verbo, berço
de toda criatura
cuja amargura não tem endereço.

Quando leio um poema de Drummond
Essa é minha oração, o meu alento
É como se Deus dissesse:
"Não te aflijas, meu rebento!
Há esperança!"
(Uma flor nasceu na rua! É feia, mas é uma flor!)
Que Alegria!

Então sei que Ele existe
Faz do poeta seu sacerdote
a transpor o limite do sagrado
pois mostra-nos, em sua ode,
Amor divino disfarçado
em poesia.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Metáfora - Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A espera

Aguardo-te chegar sentada nesse banco alto do bar do restaurante onde sempre marcamos. A moça de óculos escuros, na mesa à frente, não olhou nem sequer um segundo para o homem que a corteja delicadamente. Se eu tivesse uma filha ela se chamaria Eleonora. Eleonora? É por isso que não terei filha. Serei mãe de meninos, eu sei.

Minha roupa simples parece inadequada à ocasião, mas gosto dela: sapatilhas vermelhas, calças jeans, minha camisa preferida, um anel, grande, de ouro, brincos de pérola. Ajeito-me, alisando a roupa sistematicamente, como se a tornasse digna com o gesto repetido. Aceito mais uma dose e bebo sem pressa. Ele não se atrasa. Há tempo. O tempo é exato.

Tudo está no seu devido lugar, no lugar que cada coisa escolheu, ou onde lhe puseram. Cada qual que providencie a parte que lhe cabe. Aos outros, cabe a generosidade de ser generoso, se preciso for. E se eu tiver uma filha? Nome é bobagem. Nossa, dessa vez ele se atrasou. Acho que vou beber uma tequila. A moça tirou os óculos, enxugou as lágrimas, deixou-se abraçar. Não adianta resistir, manter-se no sofrimento. Perdoar é libertador, acho que foi o que o homem disse. Uma dose de tequila por favor!

Meus olhos sorriem. Uma alegria modesta e constante me mantém. Uma alegria aguda explode! Que bom que chegou! Não quero perder o tom, nem o horário, nem o desejo, nem o bonde, nem a medida do nosso amor.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Palavra (En)cantada

Assisti, nessa semana, à incrível obra de Helena Solberg, Palavra (En)cantada. Documentário belíssimo construído a partir de depoimentos e apresentações de grandes nomes da música popular brasileira: Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Maria Bethânia, Lenine, Zeca Baleiro, Cartola, etc. Mais do que falar de música, no entanto, fala-se de canção, letra e música, palavras e ritmos, sentidos e sons.

Seguem trechos que me marcaram. Alguns sem referência, infelizmente. Compartilho-os:

"Saiba que os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão"

"A poesia me deixa impressionado com a vida"

"A literatura deve ser compartilhada como um pão, no café da manhã de todo dia"

"O futuro é uma brincadeira que a gente tropeça nele. Tudo se acha no passado" (Tom Zé)

"A massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico" (Oswald de Andrade)

"A função da literatura é nutrir o homem de impulsos" (Arnaldo Antunes)

O filme brinda nossos olhos, ouvidos e, principalmente, nosso coração com as sofisticadíssimas criações que compõem nossa canção popular. Por que nossa música popular é tão rica? Por que nossas letras têm procedimentos estéticos dignos dos mais belos poemas? Qual o motivo de produção tão vasta e variada? Assista ao filme, consiga algumas respostas, invente outras e deixe-se encantar.