domingo, 30 de janeiro de 2011

Se essa sensação de hoje pudesse ser uma foto, nada na imagem seria reconhecido, mas as cores seriam hamoniosas, claras. No centro dessa claridade de cores suaves e harmoniosas eu estaria diante de um espelho e o meu olhar me olharia sem se desviar. Haveria também uma música, na foto, porque meu corpo estaria inclinado para o lado e minhas mãos imitando as mãos de uma bailarina e minha boca contraída para cantar aquela canção, que é como eu gosto de estar. Antes do espelho, ao meu lado, é a sua música que eu canto; a música que sai do seu violão. E, mesmo a foto sendo um registro da realidade, eu não sei, mas haveria tantas pessoas, vivas e mortas, na mistura das cores, que ninguém saberia de quem se tratava, mas quem olhasse ficaria alegre.

Se essa sensação de hoje fosse uma palavra, seria gratidão.

Se fosse um livro, seria o primeiro.

Se fosse um lugar, seria minha casa.

Se fosse um filme, seria dos bonitos (que fazem chorar).

Se fosse um dia, não terminaria.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Eu tenho um problema. Ultimamente só consigo falar na primeira pessoa e a ficção não tem enchido muito meus olhos. Não consigo inventar e escrever; ou invento mas não escrevo ou sinto vontade de escrever para falar de mim. Preguiça de criar um nome, uma personagem, uma metáfora, uma complicação para dizer simplesmente aquilo que sinto...

Preciso de um novo diário.

Até!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Religiosidade

A palavra ata-me ao mundo
Torna-me irmã até mesmo do mais imundo
dos homens, porque o meu começo,
e o dele, foi o verbo, berço
de toda criatura
cuja amargura não tem endereço.

Quando leio um poema de Drummond
Essa é minha oração, o meu alento
É como se Deus dissesse:
"Não te aflijas, meu rebento!
Há esperança!"
(Uma flor nasceu na rua! É feia, mas é uma flor!)
Que Alegria!

Então sei que Ele existe
Faz do poeta seu sacerdote
a transpor o limite do sagrado
pois mostra-nos, em sua ode,
Amor divino disfarçado
em poesia.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Metáfora - Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A espera

Aguardo-te chegar sentada nesse banco alto do bar do restaurante onde sempre marcamos. A moça de óculos escuros, na mesa à frente, não olhou nem sequer um segundo para o homem que a corteja delicadamente. Se eu tivesse uma filha ela se chamaria Eleonora. Eleonora? É por isso que não terei filha. Serei mãe de meninos, eu sei.

Minha roupa simples parece inadequada à ocasião, mas gosto dela: sapatilhas vermelhas, calças jeans, minha camisa preferida, um anel, grande, de ouro, brincos de pérola. Ajeito-me, alisando a roupa sistematicamente, como se a tornasse digna com o gesto repetido. Aceito mais uma dose e bebo sem pressa. Ele não se atrasa. Há tempo. O tempo é exato.

Tudo está no seu devido lugar, no lugar que cada coisa escolheu, ou onde lhe puseram. Cada qual que providencie a parte que lhe cabe. Aos outros, cabe a generosidade de ser generoso, se preciso for. E se eu tiver uma filha? Nome é bobagem. Nossa, dessa vez ele se atrasou. Acho que vou beber uma tequila. A moça tirou os óculos, enxugou as lágrimas, deixou-se abraçar. Não adianta resistir, manter-se no sofrimento. Perdoar é libertador, acho que foi o que o homem disse. Uma dose de tequila por favor!

Meus olhos sorriem. Uma alegria modesta e constante me mantém. Uma alegria aguda explode! Que bom que chegou! Não quero perder o tom, nem o horário, nem o desejo, nem o bonde, nem a medida do nosso amor.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Palavra (En)cantada

Assisti, nessa semana, à incrível obra de Helena Solberg, Palavra (En)cantada. Documentário belíssimo construído a partir de depoimentos e apresentações de grandes nomes da música popular brasileira: Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Maria Bethânia, Lenine, Zeca Baleiro, Cartola, etc. Mais do que falar de música, no entanto, fala-se de canção, letra e música, palavras e ritmos, sentidos e sons.

Seguem trechos que me marcaram. Alguns sem referência, infelizmente. Compartilho-os:

"Saiba que os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão"

"A poesia me deixa impressionado com a vida"

"A literatura deve ser compartilhada como um pão, no café da manhã de todo dia"

"O futuro é uma brincadeira que a gente tropeça nele. Tudo se acha no passado" (Tom Zé)

"A massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico" (Oswald de Andrade)

"A função da literatura é nutrir o homem de impulsos" (Arnaldo Antunes)

O filme brinda nossos olhos, ouvidos e, principalmente, nosso coração com as sofisticadíssimas criações que compõem nossa canção popular. Por que nossa música popular é tão rica? Por que nossas letras têm procedimentos estéticos dignos dos mais belos poemas? Qual o motivo de produção tão vasta e variada? Assista ao filme, consiga algumas respostas, invente outras e deixe-se encantar.





sábado, 18 de setembro de 2010

Meu caro,

Quanto tempo, eu sei. Mas ainda estou aqui e nesse tempo tive vontade de escrever-lhe algumas vezes, porém era preciso viver. Há novidades: ando pensando muito e amiúde em ser mãe. Não, não se assuste, não seria para agora, mas é que, tempos atrás, esse pensamento parecia-me estrangeiro, eu, ainda tão criança, mãe? Impossível. Uma criança não caberia na minha vida, quer dizer, na nossa vida, porque tenho a sorte de usar a primeira do plural com propriedade e amor. E esse desejo tem nascido de um modo tão bonito, que ele deve ser válido.

Sabe o que é? Eu gosto de pessoas, gosto do ser humano, acho-o uma máquina incrível de criatividade e belezas. Mesmo quando o que mostram são feiúras e repetições imbecis de erros já tão ultrapassados, acredito que o fazem pensando que estão sendo autênticos e belos. Alguns homens estão cegos para suas infinitas possibilidades de amor e criação. Não tenho raiva deles, tenho dó. Lamento enormemente que nem todos sintam a pulsão para o bem ou que a reprimam ou que não a possam sentir, pois só conheceram, desde o seu nascimento, o ódio e a indiferença.

Por sorte, e é disso que se trata a minha recente aceitação para o destino materno, estou cercada daqueles que fazem com que a existência nesse pedaço de chão, um pouco de céu e mar, não seja apenas um acúmulo de provações. Ando religiosa, sentindo-me novamente ligada a alguma coisa maior que não pretendo dar nome nem rosto, mas que faz eu reconhecer, naqueles que nem mesmo conheço, um traço de irmandade.

Há algumas crianças, adolescentes e jovens jovens perto de mim, quase todos os dias. Como são criativos! Como são livres, verdadeiros, sem preconceitos. Alguns tão sensíveis, você sabe, com os quais posso ser cúmplice silenciosamente. O que nossos silêncios e palavras compartilham? Algumas dores, tão reais e impossíveis de se escapar, artes, perdas, alegrias, saberes. Compartilho, quase todos os dias, com esses seres humanos ainda em desenvolvimento, minhas humanidades. Aprendo e recomeço. Diante de tanta vida, não há espaço para a morte de nenhum desejo.

Nem para o desejo de ser mãe, apesar de o mundo parecer assustador. Quando meu corpo e nossa vida estiverem prontos, cumprirei, feliz, esse papel que faz parte da minha natureza tão feminina.

Desculpe-me, mas não precisa responder. Eu só queria contar.

Carinhosamente,