terça-feira, 14 de agosto de 2012

É o que o tempo faz.

Não é o fim do mundo. Mas confesso que fiquei triste por não encontrar nenhuma foto em que estivéssemos nós dois apenas. Fiquei desconfortável com isso que não pode ser questionado, não se pode mudar. Não gostei de não termos tido mais tempo.  O que primeiro se esquece de alguém que não se vê é a voz. Depois o cheiro. Depois os modos: o andar, as mãos no ar, o olhar. A risada barulhenta. Depois o rosto.

Já esqueci o rosto. Faz tempo. A imagem dele é uma falta imensa. Só vejo a falta. Um vulto. Porque não tivemos tempo. E eu adoro quando alguém me conta uma história nova dele, pois é a única forma de ele ser algo além do vazio da repetição da imagem que falta. Ultimamente todas as histórias estão velhas. O tempo foi pouco pra todo mundo.

Não era o que eu procurava, mas aqui estou em seu colo. Tão pequena. Nada eu lembro desse dia. Mas o sorriso é bonito. E, na foto, ele tinha apenas 27 anos. A idade que eu tenho hoje. Era um garoto com dois filhos. E ele sorria.

O efeito é do tempo mesmo. É o que o tempo faz: tira a tinta, a cor, o tom...

sábado, 30 de junho de 2012

Num salto, a vida

Fazia três anos que meu marido estava gravemente doente. Há dois anos que, entre melhoras e recaídas,  ele praticamente não se levantava da cama e, quando o fazia, caminhava com muita dificuldade até a cadeira que ficava ao pé da janela. De lá, sentado, via a vida em turbilhão na cidade. Mas, verdadeiramente, seus dias se resumiam ao quarto cubicular, ao pequeno rádio à cabeceira e às refeições pontuais. Tornou-se um fiapo, sobra da sombra do que fora.
Com o tempo, também eu fui ficando um pouco aleijada e aprisionada àquele cômodo da casa. Nunca fui muito de pensar sobre a vida, que pobre não tem tempo para isso - a gente vive como pode e pronto! Mas era impossível não se perguntar, pelo menos às vezes ao entoar minhas preces antes de dormir, onde estava a justiça divina e que valor tinha a existência como a daquele homem, encarcerado num corpo apodrecido pelo Alzheimer, refém de uma mente invariavelmente vazia. Quem não tem lembranças o que sabe?
Naquela manhã, porém, havia algo diferente: apesar de o esquecimento habitual acordá-lo como se não fosse um velho doente e entrevado, seu olhar tinha um brilho a mais - não do esquecimento da desgraça, mas do fulgor da esperança.
Abri os olhos e ele já me encarava docemente. Além do evasivo e costumeiro "bom dia", beijou-me. Beijou-me. Na boca. Fez carinho no meu corpo. Há tanto tempo vivíamos como companheiros fraternos que olvidara o prazer de tocar-lhe os lábios. Aquele carinho acendeu-me; eu, que não tinha mais idade de ser mulher. Olhamo-nos com ternura silenciosa e cada um levantou-se de seu lado da cama, encontrando-se à janela. A rua ainda estava vazia. Ele, contudo, estava lá: conectado, presente, lúcido. A brisa fria de julho entrava pela janela levantando alegremente as cortinas.
- Tomei uma decisão, ele disse calmamente. Foi hoje cedo, antes de você acordar.
- O que foi? O quê? Faz tanto tempo que a gente não conversa... Muito menos sobre decisões ou futuro... Que bom que você está de volta... (Esperança!)
- Eu estou cansado. Você vê? Você me vê? Me entende? Eu digo... Sente a minha dor? É insuportável! Então eu rezo para que me perdoe. Mas eu vou...
- Vai?
-...

Minha pergunta foi acompanhada por um salto mudo e rápido. De repente um estampido. Seu corpo desceu seis andares como um pedra. Não pude reagir. Eu era uma estátua à janela. Não sei quanto tempo passou até que eu pudesse me mexer e olhar. Eu poderia dizer do meu desespero, da minha vontade de também cair, da impossibilidade de continuar vivendo. Mas seria mentira... Confesso minha cruel humanidade: aqueles segundos em que minha razão esteve suspensa e eu fui só sentimento foram preenchidos por um surpreendente alívio. Lá de cima, vi um corpo disforme e irreconhecível no chão. Mas tive a impressão de que ele sorria.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

As palavras me dão muitos arredores.

sábado, 3 de março de 2012

O cabelo crespo do meu pai.

Estou precisando entranhar meus dedos em cacheadas ondulações. Acariciar tão fundo que encontre a pele. Deslizar a palma como quem não quer pegar. Enroscar indicadores em molas, puxá-las e ver a dança do retorno.

Quando foi que esqueci que isso era bom? Em que buraco negro (!) da ditadura da uniformização ficou preso meu cabelo? Nada em mim é liso: nem meus poros nem minhas crenças. Por que meus cabelos hão de ser?

É mais fácil se saber quando olha no espelho e encontra ali o reflexo de uma verdade.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Quando eu fico muito feliz, não saio bem na foto. Sem trocadilhos. Sorrio demais. Um sorriso escancarado que não é fotogênico. Não me preocupo com meu melhor perfil nem com a papada que certemente surgirá desse ângulo. Minha felicidade não é medida em pixels. 

Sempre penso, vendo as fotos, que eu poderia ter feito uma pose mais elegante e que meus cabelos poderiam estar mais bonitos. Talvez seja por isso que, embora aprecie bastante fotografia, eu tenha poucos registros  em comparação aos meus contemporâneos.

Apesar disso, deixo-me fotografar. Tenho a esperança de que um dia essas imagens servirão a uma memória já cansada e serão a cartografia dos dias vividos. Acredito que no tempo da velhice, caso eu chegue lá, a beleza não terá tanta importância ou ela terá mudado de sentido, possivelmente. Oxalá eu esteja sempre feia nas fotos: sinal de que aquele fora um momento de extrema felicidade.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Eu tenho par nisto tudo neste mundo.

Tenho preguiça de dissertar. Acho dissertações, em geral, chatas. Desprezo a arrogância daqueles que querem provar que estão certos. Os com razão não me interessam. Adoro os incertos, os poetas, os bêbados, os otimistas, os cheios de esperança. 

Mas há uma ideia que vem me perseguindo que daria uma ótima dissertação. Eu poderia desfiá-la por várias linhas, apresentar pontos de vistas diversos e etc e tal. Nada disso me apetece. Então vou só dizer para eu não esquecer: estou sempre fazendo testamentos. Serei ética e não direi que isso saiu da minha cabeça. Foi outra pessoa quem o disse, mas me atingiu tão em cheio que duvidei da inexistência de Deus.

É isso: você precisa desejar e ser bom no que deseja. Simples assim. Só isso. Na verdade essa pessoa disse isso de outro modo, bem mais elaborado, meio entediante. Mas me transformou. 

Ela não disse e eu ouvi: ser bom não é ser melhor, pelo contrário: se ver bem pequenina, se despojar, desapegar, se assemelhar em vez de se diferenciar tornam a vida bem bonita.


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

E, de repente, quando percebo, eu sou toda texto.