terça-feira, 8 de dezembro de 2009

o guarda-chuva laranja (uma homenagem a uma fada)

Era o mês de julho e fazia frio. Fazia tempo que julho não se parecia tanto com julho. Chovia sem parar gotas pequenas e escassas, porém insistentes. O tempo era, portanto, um imperativo à vida doméstica; mesmo assim, naquele dia, era preciso sair: já não havia mais comida nem para o gato (talvez se fosse só para mim, eu suportasse mais um dia de dieta de baixa caloria).

Livrei-me do pijama de flanela e essa nudez obrigatória pareceu congelar-me a alma. Calças, agasalho e botas foram sufucientes para recompor-me. Na rua, muitos guarda-chuvas batiam-se na calçada espremida a caminho do supermercado. Não via as pessoas, somente todo o aparato que as protegia. Essa realidade é uma metáfora ao contrário, porque não me recordo da última pessoa que realmente vi. As representações têm sido levadas tão a sério, que há a equívoca sensação de que todos são atores, quando não se percebe que o ator, antes de ser outro, expõe publicamente tudo o que verdadeiramente é. Pensei isso enquanto pegava o troco de minhas compras.

Voltava para casa quando, subitamente, o chuvisco cessou e feixes de luz ultrapassaram as nuvens. Senti cheiro de chuva secando. O dia estava mais claro e convidativo. Passando ao lado do único parque da cidade, vi, de relance, alguém por quem tinha muito afeto. Era a avó de uma grande amiga que há muito saiu do país. Fui ao seu encontro e, expressando minha alegria em revê-la, dei-lhe uma longo abraço. Longo e não-retribuído abraço. Estranhei tal frieza e me afastei delicadamente. Ela não olhava em minha direção.

A mulher vestida de branco que a acompanhava tratou de explicar: "É alzheimer, tadinha...". Ouvi meu coração trincando. Pela segunda vez no dia minha alma congelou. A acompanhante informou-me que a família fazia visitas periódicas e que era ela quem cuidava de dona Lucíola. Senti raiva, desprezo e, por fim, compaixão. "É difícil para todos", ela completou o que eu pensara.

Mesmo sob advertências de que sua memória estava péssima, insisti em conversar. Não poderia, porém, ter começado com pergunta mais imprópria:

- Lembra de mim? Joana, filha da Silvia, da casa de esquina? Eu e Luciana, sua neta, brincávamos quase toda tarde no seu jardim...

Ela se virou calmamente, olhou-me e perguntou:

- Quem é você?, ela fez a pergunta mais cruel que se pode fazer a alguém.

- Joana, filha de Silvia, da casa da esquina...

(Ela sorriu)

Com um sorriso, foi assim que ela me respondeu. Nem sim nem não, mas com um sorriso. Compreendi: ela não sabia a resposta. Mas isso não era uma dor. Também não era uma alegria. Ela sorriu como criança sorri, como criança, ao não saber uma resposta, sorri. E o seu sorriso me disse que ali ainda havia alguém real, com lacunas que a vida e a doença lhe impuseram, mas cuja autenticidade não se questionava.

Uma brisa fria levou daquele rosto a expressão reconfortante que eu vira segundos atrás. Despedi-me das senhoras. Voltou a chuviscar enquanto eu abria a porta de casa. Entrei. Olhei-me no espelho do corredor da entrada e me vi.

2 comentários:

Anônimo disse...

Em nome de minha memória, agradeço por permitir que eu a veja um pouco mais...

Unknown disse...

Em nome de minha memória, agradeço por permitir que eu a veja um pouco mais...