domingo, 5 de setembro de 2010

Milagre

Dia desses usei uma metáfora, baseada em outra metáfora, para explicar a outra pessoa um momento que estava vivendo e uma decisão que havia tomado. Então eu disse: é que eu ando nascendo muito ultimamente. Foi uma revelação, para mim. Na primeira vez em que a usei, por isso disse "uma metáfora baseada em outra metáfora", ela foi construída de outra forma. Eu dissera apenas que parecia que havia nascido há pouco.

Quando revisitei esse símbolo, já carregado de outras horas e dias e vivências, apenas um nascimento não daria conta do que precisava expressar. Foi preciso exagerar a lógica humana e nascer várias vezes. Para que nos aproximemos mais da realidade, preciso contar o que de fato aconteceu. O que está acontecendo.

Ando nascendo de palavras. As palavras que leio apresentam-me, todos os dias, a vida, a beleza e o saber. Aprendo com palavras e por meio delas ensino. As palavras que digo me curam. Não depressa. Por isso é um processo. Mas à medida que as elaboro, me elaboro; quando as organizo, é a mim que coloco no lugar; se as pronuncio decididamente, descubro-me forte; e, se entre soluços não as distingo bem, sei que preciso respirar e dar -lhes tempo: as palavras são mais inteligentes quando têm tempo de se realizarem em sua forma e conteúdo.

Nunca coloquei aqui o poema completo de Cecília Meireles que dá título ao blog. Esse é um bom momento.

Romance LIII ou Das palavras aéreas

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora...

- e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juízes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?

- Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!



6 comentários:

Anônimo disse...

Com toda a incerteza você é um mistério pra quem quer entendê-la. Talvez um poço de sensibilidade inesgotável.
Admiro suas palavras e seus devaneios.
Obrigada por existir!

Carol da Matta disse...

Não sei se gosto muito dessa coisa de anonimato... quem é você, para que eu possa agradecer palavras tão gentis?

ivinha disse...

Ah, me desculpa. Eu sou a quem escreveu o recado acima. Enfim, é o hábito de escrever em anonimato. Muito faço pois tenho receio de que minhas palavras não venham a servir de nada.
:D
Ah, não deixa de postar !
Gosto dos teus textos.
E, sou Ivy.

Carol da Matta disse...

Ivy, obrigada pelas palavras. Elas são muito importantes =)

Daniel Caldeira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel Caldeira disse...

Belo texto Carol. E é verdade. Se bem que as vezes eu me pego pensando e duvidando se as palavras que usamos hoje como concretas não são metáforas de muito antigamente. Transforme suas metáforas em verdade, se assim for bom.
Um beijo!