terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

simulacro

Minhas palavras, essas palavras, são as testemunhas oculares da minha incapacidade de simplesmente dizer.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ela

A mão que não tem força. A carne flácida, coberta por uma pele de cuja maciez não se tem nem lembrança. E não foi isso que me mobilizou. Foi o olhar: para baixo, embaçado, sem céu.

Isso foi no meu primeiro encontro comigo, na velhice sem idade. Por vezes a menina me visitou. À propósito, ela sempre esteve presente, bastando uma mera menção ao seu tempo para vir à tona. Encontrar-me com a menina era recuperar uma distinção apaziguadora. Impressionante, mas, apesar de tão nova, dela eu herdei a identidade e a singularidade; também restaram as dores que, de tão adultas, ainda hoje são dignas de serem sentidas. Se ver a menina fazia-me reviver em mim, enxergar a velha matou-me um pouco. Uma morte precipitada mas verdadeira.

Nunca antes preocupara-me com o passar dos anos. Pelo contrário: ansiava-os! A menina era potencialmente, mas não concretamente. A concretude das ações veio com a vida adulta. E os anos continuaram sendo bem-vindos. Envelhecer, até o encontro de ontem, era uma dádiva, uma oportunidade, o fim do drama e dos conflitos, o momento da paz assegurada, da segurança, da solidez, da serenidade, da beleza.

A beleza é importante (para mim). Eu me acho bonita e é realmente um prazer quando sou vista assim - apesar de isso não ser essencial; mesmo sozinha sinto-me bonita. Acostumei-me à expressão surpresa das pessoas ao dizerem "você é bonita", como uma descoberta. Já estava ali. Não é uma beleza óbvia, no entanto. Não tenho medo de parecer presunçosa, pois a imagem que o sujeito faz de si mesmo é apenas uma imagem, que pode até determinar a relação dele com o mundo, mas apenas uma imagem.

Então era assim: imaginava-me bela. Sempre. Entretanto, a velha que veio assombra-me, eu-velha, não era bonita. Havia uma feiura que saía do olhar.

E por que ela veio? Não a invoquei, como por diversas vezes fizera com a menina. Pensava que ainda não precisava dela. Sei que tudo o que ela representa é construído, só vivendo para ter. Então, por que, ontem, ela acordou-me e esteve ao meu lado pelo resto do dia, assustando-me com sua feiura?

Muda. Ela nada pronunciou, nenhum som. Ah, menina, vem e afasta-a de mim! Tagarele um pouco as suas felicidades inocentes, conte-me suas deliciosas descobertas, pinta o meu mundo com seus olhos de fantasia! Nada. Só a velha por aqui. Confesso que houve um longo período de negação. Neguei categoricamente sua presença. Adiei olhar-lhe novamente. Lá pelo final do dia, quando a luz deu uma trégua e a sombra nos recebeu, calorosa, não pude mais resistir. Encarei-a.

Ela estava de pé, junto à soleira da porta. Braços cruzados ao redor da barriga. Usava vestido de tecido na altura dos joelhos. As pernas continuavam finas. Cabelos grisalhos presos na metade da cabeça. Sua magreza seria elegante não fossem as peles caindo em camadas sob o pano fino. Ela não sorriu (talvez, se sorrisse, ficasse menos feia, dizem que meu sorriso é bonito). Apenas olhava-me fixamente. Os olhos tinham as pálpebras um pouco caídas. Eu tive pena de mim. Nunca senti pena de mim antes, até ver-me velha.

Quer dizer então que é possível não apaziguar-me? Que com o passar dos anos posso gostar ainda mais do drama (como o animal que histericamente se debate, ignorando o que o prende)? Que minha segurança eram muletas que se partiram e que nunca estiveram em mim? Quer dizer que seguimos por um caminho desconhecido. Que a menina pode potencialmente tudo e que ela e a velha e todas elas são esplêndidas manifestações possíveis para a mesma vida.

Ela queria me dizer algo. Silenciosa e contundentemente disse-me que não se pode negar impunemente a feiura em nós.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Silêncio (1799-1801), de Füssli.

meu silêncio é minha covardia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

da série usando palavras alheias - II

Sabem o que
descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me
entorno e ainda morro vazia, sem gota.


(Do conto "A despedideira", do
livro O fio das missangas, de Mia Couto)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Diário na sombra (trecho) - Álvaro de Campos

(...)
Há, além disso,
Aquele pasmo negro, aquele arrepio sombrio,
Que seria na alma
O ter havido um segredo de Deus
Dito no grande solo antenatal, quando a vida
Não raiava ainda ao longe,
E todo o Universo luminoso e complexo
Era ainda um destino inevitavelmente a cumprir.
Se isto não me define - e isto não me define,
Porque o Segredo que Deus me disse não era só isto.
Amo esta cousa que é hoje estar do lado do irreal,
O fim que há nisso, o meu dever de compreender o incompreensível
O meu sentimento d'haver quem não se pode sentir,
O meu grande interesse de impedir na infância,
O domínio dos sonhos arquitetatos na luz.
Sim, é isto que põe
Uma velhice anterior à minha infância na minha face
E no meu olhar uma angústia interior à minha alegria.
Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando,
E não compreendes,
E tornas a olhar, disfarçadamente e sempre...
Sem Deus não há vida nesta vida
E não poderás nunca compreender...

(17.09.1916)


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

o guarda-chuva laranja (uma homenagem a uma fada)

Era o mês de julho e fazia frio. Fazia tempo que julho não se parecia tanto com julho. Chovia sem parar gotas pequenas e escassas, porém insistentes. O tempo era, portanto, um imperativo à vida doméstica; mesmo assim, naquele dia, era preciso sair: já não havia mais comida nem para o gato (talvez se fosse só para mim, eu suportasse mais um dia de dieta de baixa caloria).

Livrei-me do pijama de flanela e essa nudez obrigatória pareceu congelar-me a alma. Calças, agasalho e botas foram sufucientes para recompor-me. Na rua, muitos guarda-chuvas batiam-se na calçada espremida a caminho do supermercado. Não via as pessoas, somente todo o aparato que as protegia. Essa realidade é uma metáfora ao contrário, porque não me recordo da última pessoa que realmente vi. As representações têm sido levadas tão a sério, que há a equívoca sensação de que todos são atores, quando não se percebe que o ator, antes de ser outro, expõe publicamente tudo o que verdadeiramente é. Pensei isso enquanto pegava o troco de minhas compras.

Voltava para casa quando, subitamente, o chuvisco cessou e feixes de luz ultrapassaram as nuvens. Senti cheiro de chuva secando. O dia estava mais claro e convidativo. Passando ao lado do único parque da cidade, vi, de relance, alguém por quem tinha muito afeto. Era a avó de uma grande amiga que há muito saiu do país. Fui ao seu encontro e, expressando minha alegria em revê-la, dei-lhe uma longo abraço. Longo e não-retribuído abraço. Estranhei tal frieza e me afastei delicadamente. Ela não olhava em minha direção.

A mulher vestida de branco que a acompanhava tratou de explicar: "É alzheimer, tadinha...". Ouvi meu coração trincando. Pela segunda vez no dia minha alma congelou. A acompanhante informou-me que a família fazia visitas periódicas e que era ela quem cuidava de dona Lucíola. Senti raiva, desprezo e, por fim, compaixão. "É difícil para todos", ela completou o que eu pensara.

Mesmo sob advertências de que sua memória estava péssima, insisti em conversar. Não poderia, porém, ter começado com pergunta mais imprópria:

- Lembra de mim? Joana, filha da Silvia, da casa de esquina? Eu e Luciana, sua neta, brincávamos quase toda tarde no seu jardim...

Ela se virou calmamente, olhou-me e perguntou:

- Quem é você?, ela fez a pergunta mais cruel que se pode fazer a alguém.

- Joana, filha de Silvia, da casa da esquina...

(Ela sorriu)

Com um sorriso, foi assim que ela me respondeu. Nem sim nem não, mas com um sorriso. Compreendi: ela não sabia a resposta. Mas isso não era uma dor. Também não era uma alegria. Ela sorriu como criança sorri, como criança, ao não saber uma resposta, sorri. E o seu sorriso me disse que ali ainda havia alguém real, com lacunas que a vida e a doença lhe impuseram, mas cuja autenticidade não se questionava.

Uma brisa fria levou daquele rosto a expressão reconfortante que eu vira segundos atrás. Despedi-me das senhoras. Voltou a chuviscar enquanto eu abria a porta de casa. Entrei. Olhei-me no espelho do corredor da entrada e me vi.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

doce leveza


há um coração pulsando em minhas mãos.
não é o meu,
mas levo-o comigo
porque é leve como uma pena.

não sei o destino dele.
ele não é meu,
nem nunca será:
cada um tem um coração
apenas.

enquanto isso, trago-o junto ao peito
e seguimos uma caminhada feliz.
até que ele encontre
um lugar vazio
onde possa repousar.