Preciso de um novo diário.
Até!
"(...) as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa" (Roland Barthes. Aula.)
Desculpe-me, mas não precisa responder. Eu só queria contar.
Carinhosamente,
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juízes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
Ciléa .
Uma grande Mulher. Sabe-se que nem Freud conseguiu definir o que é ser Mulher. Já Lacan, e perdoem-me a simplicidade com que trato disso, principalmente os verdadeiramente versados em psicologia, diz que a Mulher, com letra maiúscula, não existe. O Homem tem uma representação padrão, o falo, do que é ser homem. A mulher não: ela é única e precisa fazer-se existir e representar-se a cada momento. Por isso, numa festa, é tão ruim ter uma mulher com o mesmo vestido que o nosso, é como se ela se representasse da mesma forma como nós .
Ciléa foi desas mulheres que se fizeram ( e se fazem) únicas. E Que vestidos Ciléa vestiu na vida? Na infância, é possível que fosse simples, sem muitas cores, filha do meio... sabe como é... Mas com certeza adorava o uniforme escolar, pois era com ele que estudava... uma pena foi tanta inteligência não poder ter ido formalmente adiante. Uma vez, no auge da arrogância adolescente, minha avó tentava me consolar porque estava muito nervosa com o vestibular e eu insensível falei: E a senhora sabe o que é vestibular? Ela não respondeu e chorou. Fiquei paralisada. Ela disse um tem depois: não estudei mais porque não pude. Mas tenho muito orgulho de ver meus netos na Universidade (quem a conhece, sabe que ela completaria – todos na Universidade pública.) Se tivesse ido à Universidade o que seria? Seria uma grande cientista? Professora? Economista? Médica? Não, seria artista. E foi. E é.
Vestiu-se de noiva para casar: vestido plinçado e passado prega por prega, não é isso vó? Conheço a foto, mas quem viu pessoalmente em 1952 disse que parecia uma princesa. No entanto, as verdadeiras vestes de sua vida de casada foram um pouco mais duras, tiveram de ser. Engana-se quem pensa que ela capitulou frente ao desafio: foi companheira leal até o fim.
Seus vestidos outros, todos, manchados: a vida adulta os tingiu de tinta de suas pinturas e artes, de molhos da sua cozinha, uniu a eles fitas dos vestidos que fazia para suas filhas, retalhos das camisas do filho e até de algumas lágrimas que também devem tê-los molhado.
Sem importar a roupa: de feira, de dona-de-cada, de muambeira, de costureira, de boleira e doceira, de mãe, de avó e de esposa havia sempre, como uma capa que dá nobreza a qualquer vestido, a firmeza do caráter em cada ação.Cileá não sabe muito fazer carinho, ela sabe agir. E suas ações são sempre tão cheias de honestidade e honradez e amor e firmeza, que, sem importar a roupa, sempre foi altiva na vida.
Vovó foi acumulando vestidos, personalidades, funções. Foi incansável, é incansável. Uma última historinha que ilusta sua disposição: no ano em que anunciei o meu casamento, em 2008, ela estava fazendo um curso de pintura em tecidos. Teve, então, a ideia de fazer panos de prato e tolhas para o meu enxoval. Não bastasse isso, ela queria bordá-los, mas não sabia. Um dia, foi ao centro de São Gonçalo e descobriu uma senhora que vendia panos bordados. Perguntou se a outra senhora poderia ensinar-lhe. A partir daquele dia, todos os dias, após o Vale a pena ver de novo – é grande noveleira! -, durante um bom tempo, foi ao encontro daquela outra mulher aprender a bordar. Aos 78 anos. Cileá descobriu que velho é quem desistiu de aprender.
Hoje, comemorando seus 80 anos, seu brilho no olhar enche-a de babados, de paetês, de cores. Porque Ciléa, avó, mãe, irmã, tia, cunhada e amiga amada, saber gostar da vida e sabe viver!
E é com muita alegria que hoje todos nós nos vestimos de festa para celebrar sua vida!Eu tenho muitos pesadelos. Desde a infância que os maus sonhos me acompanham, me assombram, fazem-me despertar no meio da noite com o coração aos pulos, a perna tremendo e com medo. E, nesse caso, escrevo na primeira pessoa sendo eu, um eu-empírico que usa esse espaço em branco para se organizar. Contar uma nova história ou uma velha história novamente, com novidade, é um nascimento. É bom inaugurar um papel totalmente
Todos eram aterrorizantes. No entanto, havia um mais cruel que todos. Recorrente. Eu ia por uma estrada escura, de terra batida, com uma chuva que não chegava a molhar o chão, mas deixava o ar embaçado. Essa estrada não tinha fim. Quilômetros e quilômetros de caminhar sem haver uma chegada. Era frio. Eu estava só. Queria chegar, queria voltar. Aonde? Pra onde? Pois é, eu nunca soube. Daí a angústia e um peso no peito sufocante que permanecia mesmo após horas de acordada. Em algumas noites esse longo trajeto era apressado por uma corrida, uma fuga desesperada, pois algo estava prestes a me pegar. Nunca tive coragem de olhar para trás e conferir o tamanho do monstro.
Essa noite, entretanto, foi diferente: eu tive um sonho bom. Não que eu não os tenha; eles são raros. Somente vez ou outra vêm alegrar meu sono. Mas essa noite... eu sonhei que eu dirigia: nem desgovernada por uma ladeira, nem fugindo de alguém, nem prestes a cair num precipício... eu dirigia um conversível (imaginem... eu que nem sei dirigir de verdade!) e estava de dia! Era um dia claro, com um sol tímido que colocava uma lente amarelada nos meus olhos. Assim como a outra, essa estrada era tortuosa, cheia de curvas e eu também não via seu fim. Porém isso não doía. Não lembro se havia um mar limitando-a a leste, mas a brisa estava lá, aumentando toda vez que pisava fundo no acelerador. Prazer da corrida. Cheiro de sal. Gosto de domingo. Eu apertava, com força e segurança ,o volante. A cada curva, uma sensação de avanço era sentida através do meu sorriso: alegria de crescer.
Éramos apenas eu, o carro e a certeza de que não havia perigo. Esse controle e essa liberdade, ninguém mos rouba mais.
Queria hoje escrever uma poesia
que não fosse nem sobre escrever
nem sobre as dores que ainda vou ter
Queria escrever uma poesia sem agonia
gostaria que ela sorrisse
que não fosse triste
Queria escrever uma poesia leve
com ar de fim de tarde na praia
aguardando que o sol caia
Lá fora poderia haver neve
que esse brilho aqui, dentro de mim
faria, docemente, brotar assim
esse poeminha cheio de alegria para mim.
Carlos Drummond de Andrade.
O filme é bom. Mas a história é melhor. O filme acabou e continuei chorando por alguns minutos. Levantei-me apenas porque fui convocada por pernas apressadas e luzes acesas. É um filme sobre superação: típica narrativa americana, nada de novidade. O título denuncia. No entanto, emocionei-me com essa tal superação, com a solidariedade que permitiu que o personagem principal tivesse um futuro diferente daquele que lhe parecia reservado. Saber que isso realmente aconteceu, hoje, agora há pouco, num país próximo, sensibilizou-me mais.
Há algo além, entretanto. Há duas mães no filme, duas famílias. Big Mike, ou Michael como ele prefere, participou das duas famílias, teve duas mães, muitos irmãos. A biológica não tinha meios, faltava-lhe tudo o que oferecer. Vivia à margem: vendia drogas, morava num conjunto habitacional, não sabia quem eram os pais de seus filhos. Expôs as crianças a situações traumatizantes, como a que retorna continuamente à lembrança de Michael: ele sendo tirado à força dos braços dela, pois o Estado entendeu que poderia ser melhor para ele que a própria mãe. É possível que sim, embora não tenha sido isso que aconteceu.
O menino cresce. Não tem lar, nem conhecimentos formais, nem família. Conta com o abrigo de estranhos. Mas cresce, porque a natureza elide circunstâncias, imprime seu ritmo, independente de quem seja você, dos seus medos e limitações. O tempo age. A vida cobre as cicatrizes – poucas vezes as cura. Por outro lado, um mecanismo que se expressa em outras formas na natureza, faz com que ela se autocompense; alguns chamam de justiça, outros de caridade. Assim, o grandalhão sobrevive, pois encontra pelo caminho pessoas que o ajudam.
Então, num dia de frio, encontra outra mãe. E, estou certa disso, para ser mãe não basta parir. Existem, entre as mulheres, aquelas que possuem um traço distintivo que faz delas protetoras da espécie. Essas são mães. Nem sempre essa proteção é clara e óbvia. Por exemplo, nesse filme, para mim, as duas eram mães. Cada uma como podia. Porque hoje eu entendo isso: as mães fazem tudo o que podem para prover alimento e felicidade, roupas e educação, cama e regras. Às vezes, no entanto, o que têm para oferecer é pouco. O que receberam é pouco. O que sabem é pouco.
Assim, a mulher que acolhe Michael e que já tem outros dois filhos, é uma mãe que pode mais. Ela não chora na frente dos filhos, compreende-lhes as necessidades, garante segurança. É mãe porque ama e protege a espécie. O que me remete à outra. Michael tinha um instinto altíssimo de proteção; claro, sob as condições em que vivia teve de aprender a proteger-se sozinho. Mas sua progenitora deu-lhe algo antes de abandoná-lo: ensinou-lhe que a vida era boa, que as tragédias passam quando se abrem os olhos ou o dia amanhece. Por isso, no meio de um problema aparentemente insolúvel, ele fechava os olhos. O tempo agia. Ao abrir, não parecia tão ruim. Se sua mãe não o podia proteger, instruiu-lhe a fazer por si.
Uma ensinou-lhe a esquecer, a se proteger e fugir. A outra, lembrou a ele o que era família e afeto, segurou-lhe, pediu que ficasse. Cada uma foi mãe como pôde.
A maternidade não é uma entidade sagrada, inquestionável nem perfeita. Mãe – refiro-me a essas vocacionadas – nem sempre tem razão. Mãe também é displicente, negligente, rancorosa, manipuladora, chantagista, controladora. Amor pode não ser sinônimo de carinho ou gentilezas. Conheço mães, das verdadeiras, que nunca disseram eu te amo. Mãe é ser humano. Aprendem esse ofício no caminhar. Certamente o que fazem e, principalmente, o que deixam de fazer, é decisivo na vida daqueles a quem criam. Mas, com mãe, sobrevive-se. É preciso entender esse amor – por vezes indizível – ser dele cúmplice, com ele tolerante, paciente, compreensivo. É preciso perdoar a falta ou o excesso dele.
Chorei porque a vida me comove; porque minha mãe e o amor dela me comovem; porque, apesar das perdas, ela estava ali quando eu abri os olhos.